Verba Legis 2023

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A ausência da mulher na política brasileira e o princípio da igualdade

por Américo Bedê Freire Júnior Nota 01 e Renan Sales Vanderlei Nota 02

 

Resumo

O presente trabalho se dedicou a asseverar o esquecimento histórico da mulher no cenário político brasileiro. Diante da necessidade de observância do postulado constitucional e internacional da igualdade, ações afirmativas vêm sendo tomadas com o passar dos anos, de maneira que a igualdade seja incorporada consubstancialmente na sociedade e não meramente formalmente. Ainda, averiguou- se se o avanço jurídico do princípio constitucional da igualdade foi suficiente para equiparar a desigualdade que sempre existiu entre homens e mulheres, notadamente no campo político, o que tornaria desnecessária, assim, a ideia de continuidade das ações afirmativas, caso a resposta seja positiva.

PALAVRAS-CHAVE: Mulheres na política. Princípio da igualdade. Ações afirmativas. Voto. Discriminação.

 

Introdução

Sem grande esforço cognitivo, verifica-se que o contexto histórico não reservou lugar de destaque à mulher no cenário eleitoral nacional. Instituída em 1932, a legislação eleitoral criou o voto secreto e universal, possibilitando à mulher, só, então, seu exercício.

Em 1933 a República presenciou, pela primeira vez, alguém do sexo feminino assumir um cargo eletivo no Poder Legislativo Federal. Ato contínuo, o sufrágio obrigatório veio insculpido na Constituição Federal de 1934, condicionando o voto da mulher ao exercício de atividade pública com remuneração.

Muitos anos após, o atual Código Eleitoral, instituído pela Lei 4.737 Nota 03 de 1965, previu o voto obrigatório para o sexo feminino, independentemente de qualquer condição, sendo que, em 1988, com o advento da Constituição Cidadã, foi concebido o sufrágio universal, direto, secreto e obrigatório para homens e mulheres.

Verifica-se, assim, o quão preterida foi a mulher, quando se observa o contexto histórico eleitoral nacional, de modo que foi preciso que a Carta Magna de 1988 Nota 04, em seu art. 5º, inciso I, prever que:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

Percebe-se que, a igualdade entre homens e mulheres é um direito fundamental que, sobretudo em razão do desprezo histórico, deve, de fato e materialmente, ser implementado, inclusive, sob a ótica do direito eleitoral, sendo esse o objeto do presente estudo.

Nessa esteira, debater o tema atualmente é de acentuada importância, notadamente para fomentar políticas públicas e ações afirmativas que proporcionem aludida igualdade material. Assim, não se pode esquecer de algumas medidas positivas tomadas tanto pelo campo legislativo, como pela jurisprudência.

As cotas de gênero foram instituídas em 1995, pela Lei nº 9.100, que estipulou que os partidos políticos e coligações preenchessem no mínimo 20% de suas vagas aos cargos de vereadores do pleito de 1996 por candidaturas femininas. Já em 1997, o art. 10, §3º, da Lei 9.504, majorou o referido percentual para o mínimo de 30% e o máximo de 70% de candidaturas “de cada sexo”, demonstrando uma visão mais otimista e estendendo a regra para todas as esferas do Poder Legislativo, federal, estadual e municipal, a partir do pleito de 1998.

A Lei nº 13.165 de 2015, por sua vez, constituiu parâmetros, mínimo e máximo, relativamente à destinação de recursos públicos do Fundo Partidário para o emprego em campanhas eleitorais. Todavia, a lei que criou o FEFC - Fundo Especial de Financiamento de Campanha, Lei nº 13.487 de 2017, não tratou de qualquer destinação específica para a candidatura das mulheres.

Não obstante, o Tribunal Superior Eleitoral, encampando o entendimento do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADI tombada sob o número 5.617/2018 Nota 05, ao editar a Resolução nº 23.607/2019 Nota 06, firmou que:

Art. 19. Os partidos políticos podem aplicar nas campanhas eleitorais os recursos do Fundo Partidário, inclusive aqueles recebidos em exercícios anteriores. § 1º A aplicação dos recursos provenientes do Fundo Partidário nas campanhas eleitorais pode ser realizada mediante:

[...]

§ 3º Os partidos políticos, em cada esfera, devem destinar ao financiamento de campanhas de suas candidatas no mínimo 30% dos gastos totais contratados nas campanhas eleitorais com recursos do Fundo Partidário, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei nº 9.096/1995 (Lei nº 13.165/2015, art. 9º).

No ano de 2021, o Congresso Nacional decretou e o Presidente da República sancionou a Lei 14.192 que,

estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas, e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais e dispõe sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral.Nota 07

Trata-se de mais uma ação afirmativa importante no cenário eleitoral que visa, em síntese e no que importa, conferir igualação jurídica à mulher, concedê-la, na prática, a igualdade constitucional de modo a deixá-la em pé de identidade com o homem.

Ainda, a novel lei além de estabelecer instrumentos que garantam sua participação na política, endurece sanções àqueles que pratiquem condutas político- discriminatórias à mulher.

No mesmo rumo, publicado em 11 de janeiro de 2022 Nota 08, no diário oficial da união, destaca-se o decreto presidencial nº 10.932 que, com fundamento no princípio da igualdade, no da não discriminação e considerando que o Brasil firmou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, na Guatemala, em 5 de junho de 2013, prevê o compromisso, dentre os signatários, de que sejam tomadas todas as medidas especiais para erradicar manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância.

Na hipótese, ressalta-se a importância do aludido decreto, uma vez que se cuida de relevante ferramenta de proteção para a mulher negra, sobretudo para aquela que deseja exercer seus direitos políticos concorrendo para algum cargo no pleito eleitoral.

Por fim, dentre os marcos trazidos neste trabalho, não poderia ser esquecida a importante contribuição para o tema conferida pelo Conselho Nacional de Justiça, quando se posicionou sobre o fortalecimento da efetividade da igualdade e dos direitos humanos.

Durante a 61ª Sessão Extraordinária, realizada em 14 de dezembro de 2021, o plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou o ato normativo nº 0008759- 45.2021.2.00.0000, que orienta e recomenda que o Poder Judiciário brasileiro, em seus julgamentos, siga a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Segundo publicado Nota 09 em sua página oficial na internet,

entre as previsões incluídas no texto da Recomendação do CNJ, também estão a necessidade de magistrados e magistradas observarem, em suas decisões, os tratados e convenções de direitos humanos em vigência e o alinhamento das leis brasileiras ao conjunto de tratados e convenções assinados pelo Brasil na área.

De acordo com tal raciocínio, o dever de efetivar a igualdade entre homem e mulher e a necessidade de respeito aos direitos humanos encontram proteção em vários tratados internacionais reconhecidos e incorporados pelo Brasil. Dentre eles destacam-se, à guisa de exemplo, o Pacto Internacional de Direitos Civis, a Carta Democrática Interamericana, a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

Ainda, à título demonstrativo e para que não haja qualquer dúvida acerca do conteúdo de tais diplomas, segue, no que importa, o conteúdo de 02 (dois) deles:

Convenção Americana Sobre Direitos Humanos Nota 10:

 Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos

 1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

 2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

 [...]

Artigo 23. Direitos políticos

 1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:

 a. de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;

 b. de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e

c. de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.

Artigo 24. Igualdade perante a lei

 Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.

 

 Declaração Universal dos Direitos Humanos Nota 11:

 

Artigo 1

 Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

 

Artigo 2

 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

 

Artigo 7

 Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

 

Artigo 21

1. Todo ser humano tem o direito de tomar parte no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.

 [...]

3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; essa vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Assim, considerando o posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca do status dos tratados de direitos humanos incorporados pelo Brasil – natureza constitucional quando acolhido pelo procedimento contido no §3º Nota 12 do art. 5º da Constituição Federal ou natureza supralegal nos demais casos –, é certo que o Poder Judiciário deve fazer o controle de convencionalidade de modo a garantir sempre a igualdade entre homens e mulheres.

Depreende-se de toda a narrativa indicada acima cenário que demonstra um processo de evolução, em que medidas afirmativas se fizeram necessárias de modo a corrigir período histórico no qual a mulher, inclusive na seara eleitoral, foi ignorada.

Cuida-se de clara tentativa de se fazer valer a igualdade material, conferindo tratamento com maior atenção ao desigual, na medida de sua desigualdade.

Porém, as medidas e políticas públicas destinadas à mulher, vítima de discriminação eleitoral histórica, foram suficientes para sanar tal discrepância espúria?

O objetivo geral do presente estudo é, então, dimensionar se o avanço jurídico do princípio constitucional da igualdade foi suficiente para equiparar a desigualdade que sempre existiu entre homens e mulheres, notadamente no campo político, o que tornaria desnecessária, portanto, a ideia de continuidade das ações afirmativas, caso a resposta seja positiva.

 

1. O princípio da igualdade e ação afirmativa no direito constitucional

O princípio da igualdade, previsto, conforme já registrado, tanto na Constituição Federal de 88, como em tratados internacionais devidamente recepcionados pelo Brasil, juntamente com a liberdade, formam os elementos mais importantes do Estado Democrático de Direito, eis que, sem ambos, não há a possibilidade de exercício, pelo povo, de seus direitos fundamentais.

Neste sentido, são as palavras de Adriano Sant’Ana Pedra Nota 13, vejamos:

A igualdade, assim como a liberdade, é um postulado necessário, sem o que não se pode falar de direito fundamentais. Nenhum indivíduo é livre sem o reconhecimento de outro indivíduo livre.

Sobre o assunto, ainda, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, o princípio da igualdade Nota 14:

[…] encontra-se diretamente ancorado na dignidade da pessoa humana, não sendo por outro motivo que a Declaração Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivo de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material.

A igualdade constitucional, para que alcance toda a sociedade, sem qualquer distinção e discriminação, deve sempre ser compreendida de forma ampla, de maneira substancial, não simplesmente formal.

Por sua vez, José Afonso da Silva Nota 15 leciona que liberdade e igualdade

são valores democráticos, no sentido de que a democracia constitui instrumento de sua realização no plano prático. A igualdade é o valor fundante da democracia, não a igualdade formal, mas a substancial.

Não se pode olvidar que o princípio da igualdade avançou nas últimas décadas, passando de um conceito constitucional estático e negativo para um conceito democrático dinâmico e positivo.

Inegável reconhecer, pois, verdadeira progressão de um momento em que aludido princípio tão somente vedava a desigualdade jurídica, puramente formal, a um período em que a igualdade constitucional permite a distribuição material de sua essência, ainda que imperfeita, até porque, conforme expressão trazida por Carmem Lúcia Antunes Rocha Nota 16, “o princípio constitucional da igualdade deixou de ser um dever social negativo para tornar-se uma obrigação política positiva”.

E é, em razão da discriminação histórica brevemente relacionada neste trabalho, que as ações afirmativas formam o conceito materialmente atualizado de igualdade constitucional refletida na e pela sociedade, diante, cabe registrar, da necessidade dinâmica de todos.

É possível afirmar, assim, que as ações afirmativas aplicam, no mundo prático coletivo, o conceito constitucional de igualdade, antes, como dito, previsto apenas formalmente no texto.

Ainda nas palavras de Carmem Lúcia Antunes Rocha Nota 17:

a ação afirmativa reconstrói o tecido social, introduzindo propostas novas à convivência política, nas quais se descobrem novos caminhos para se igualar, na verdade do direito e não apenas na palavra da lei, o que o preconceito de ontem desigualou sem causa humana digna.

É possível afirmar, deste modo, que as ações afirmativas aplicam, no mundo prático social, o conceito constitucional de igualdade, antes, como dito, previsto apenas formalmente no texto. As políticas públicas ou as ações afirmativas existem para que, no plano fático, não haja desigualdade, não haja discriminação.

Sobre o tema, ensina Luísa Hickel Gamba Nota 18:

A discriminação pode ser combatida com medidas punitivas que proíbem e sancionam atos discriminatórios negativos que prejudicam ou impedem o exercício de direitos ou o acesso às prestações devidas pelo Estado. Para equalizar as desigualdades, porém, muitas vezes é preciso fazer uma discriminação positiva, mediante a criação de medidas que possam compensar e superar as desvantagens sociais e históricas vivenciadas por alguns grupos, em razão de suas condições de gênero, raça, etnia, geração, orientação sexual, classe etc.

As mulheres, historicamente discriminadas também no universo político, precisam de ações, medidas ou políticas para compensarem as desvantagens sociais a que foram submetidas com o passar dos anos, de modo a alcançarem a igualdade material, as oportunidades de acesso e o exercício pleno dos direitos fundamentais.

A ideia de compensação reside, portanto, justamente no fato de que as ações afirmativas servem para conferir máxima efetividade ao exercício dos direitos fundamentais, dentre eles a igualdade.

Não custa lembrar que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, expressamente estampado no artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal é exatamente “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” Nota 19

Nesta toada, o Supremo Tribunal Federal, por diversas vezes, já se posicionou sobre a constitucionalidade de ações afirmativas, calhando trazer à colação, à guisa de exemplo, trecho do voto na ação, paradigmática, de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186 Nota 20), de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, tendo sua excelência assim se manifestado:

I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.

Resumidamente, o voto do relator que conduziu o acordão firmou o posicionamento de que as políticas afirmativas visam alcançar a igualdade material, a igualdade que verdadeiramente a Constituição Federal, ao ser promulgada em 1988, quis distribuir, deixando claro, ainda, que a igualdade de oportunidades é objetivo central do Estado Democrático.

Em arremate, vale ressaltar que o cumprimento, pelos partidos políticos, das ações afirmativas eleitorais femininas, criadas para, em resumo, fomentar a participação da mulher na vida política do país, privilegiando o princípio da igualdade constitucional, é sistematicamente fiscalizado pela Justiça Federal, através dos processos de prestação de contas.

 

Conclusão

Percebe-se, pois, que toda a argumentação desenvolvida no presente estudo se prendeu no fato de que ações afirmativas, políticas públicas, foram e são necessárias e constitucionais, de maneira que a igualdade material alcance grupos preteridos, não necessariamente numérico-minoritários. Mulheres, que historicamente foram alijadas do contexto político brasileiro, lamentavelmente, ainda precisam de tais ferramentas.

Por óbvio, tais ações privilegiam parcela da sociedade alvo de esquecimento ou preconceito, porém, preterem, consequentemente, outra, sempre buscando um equilíbrio social.

Por desprivilegiar parte da coletividade, portanto, as ações afirmativas não podem e não devem ser concebidas sem a observância de dois requisitos, transitoriedade e proporcionalidade.

Acerca do tema, no mencionado voto do STF Nota 21, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, sua excelência abordou muito bem o ponto, deixando claro que:

VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.

Assim, é dizer que políticas públicas devem ser pensadas na medida e por tempo necessário a alcançar um balanceamento social, haja vista que se deste modo não for, a discriminação reversa pode ser algo pernicioso a violar a igualdade material. A caça pelo equilíbrio coletivo é a palavra-chave.

De qualquer sorte, pública e notória a ausência das mulheres em cargos políticos, notadamente em cargos e funções importantes. Somente à título de exemplo, dos 11 (onze) senadores da república que compõem a mesa diretora Nota 22 daquela casa, há somente 01 (uma) mulher como 3ª (terceira) suplente, em 10º (décimo) lugar, portanto.

Ainda, dos 81 Nota 23 (oitenta e um) senadores da república, somente 14 (quatorze) deles são mulheres, do que se infere, destarte, que apenas 17,28% (dezessete vírgula vinte e oito porcento) que compõe o Senado Federal é do sexo feminino.

Na Câmara dos Deputados, dos 584 (quinhentos e oitenta e quatro) parlamentares, apenas 87 (oitenta e sete) são do sexo feminino, o que corresponde, lamentavelmente, a uma parcela pequena de adesão das mulheres no cenário político do Brasil.

Verifica-se, diante do quadro exposto, ainda necessárias as medidas afirmativas para que se alcance fundamentalmente o conceito de igualdade tão almejado pelo legislador constituinte.

Não obstante todo o raciocínio desenvolvido, uma outra preocupação deve existir. Não se duvida que a mulher tenha sido, como já repetidamente registrado, historicamente defenestrada, marginalizada da vida política brasileira, conforme demonstrado neste trabalho.

Todavia, esse fato, esse paliativo, também não pode ser suficiente para possibilitar que elas mesmas contribuam para desigualdade que, com as medidas positivas, se visa combater.

A começar pelas candidaturas laranjas. Inconcebível que as próprias mulheres se submetam a papel tão degradante, discriminatório e, por que não, criminoso, até porque, cabe salientar, diante da ausência de fixação de parâmetros mais assertivos nas candidaturas, bem como das dificuldades próprias do processo, “na maioria dos casos a prova tem exposto apenas as mulheres, destinatárias da norma afirmativa”. Nota 24

O parágrafo 6º, do artigo 17, da Resolução TSE nº 23.609/2019, estabelece que “A extrapolação do número de candidatos ou a inobservância dos limites máximo e mínimo de candidaturas por gênero é causa suficiente para o indeferimento do pedido de registro do partido político, se este, devidamente intimado, não atender às diligências”.

Não obstante, no caso dos políticos eleitos por chapas que fraudarem candidaturas femininas para conseguirem a condição legal mínima de 30%, também podem ter cassados seus diplomas, além de responderem pelo crime de falsidade ideológica, previsto no artigo 350 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral), que assim dispõe: “Omitir, em documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”.

Já a utilização ilícita de doação financeira oriunda do FEFC e do Fundo Partidário, mesmo no caso de desvio de finalidade, submeteria os responsáveis e favorecidos às penalidades previstas no artigo 30-A da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), que compreendem o impedimento da diplomação ou a cassação, se a outorga já acontecera.

A desvirtualização dos mencionados recursos financeiros pode, também, sujeitar os partidos políticos às sanções previstas na Lei 12.846/2013, uma vez que violar política afirmativa de gênero deve ser compreendido como ato que atente contra o princípio da legalidade, bem como contra compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, já que o rol trazido pelo respectivo artigo 5º é meramente exemplificativo.

Então, além da obrigação de devolver ao Tesouro Nacional os recursos utilizados irregularmente, fraudar a porcentagem estabelecida para as candidaturas femininas, violaria, consequentemente, acordos internacionais que o Brasil fora signatário, dentre eles, Pacto Internacional de Direitos Civis, a Carta Democrática Interamericana, a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, sujeitando o diretório partidário da onde ocorreu o desvio às sanções da Lei Anticorrupção, citando-se, à título de exemplo, as seguintes penas: “perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé” e “proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos”.

É preciso, outrossim, que o alerta se mantenha permanentemente vivo, de maneira que objetivando alcançar a tão desejada igualdade material, não sejam conduzidas a cargos públicos-políticos mulheres sem a devida capacidade técnica.

A necessidade de se atender a uma política de gênero, a uma determinada porcentagem de cota, não pode, de maneira alguma, ser motivo para que profissionais, no caso, do sexo feminino, sem qualificação alcancem cargos e funções públicas, sob pena de deflagração de verdadeira anemia institucional. Afinal, o desqualificado é tão pernicioso para o interesse público como o corrupto.

Inobstante, com o presente trabalho não se conseguiu mensurar até quando existirá a necessidade de políticas públicas para dizer o óbvio, que todos somos iguais, que todos devemos ter as mesmas oportunidades, que a igualdade de fato é base da democracia.

Maturidade e integridade talvez sejam alguns dos pilares para buscar esse tão almejado desfecho, para que

No Brasil que se diz querer republicano e democrático, o cidadão ainda é uma elite, pela multiplicidade de preconceitos que subsistem, mesmo sob o manto fácil do silêncio branco com os negros, da palavra gentil com as mulheres, da esmola superior com os pobres, da frase lida para os analfabetos... Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe rebuscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história feita pelas mãos calejadas dos discriminados Nota 25.

Por fim, como maciçamente defendido neste estudo, não há qualquer dúvida de que ações afirmativas são, ainda, necessárias. Todavia, de nada adiantarão se não existir um sistema de justiça realmente forte, que materialize tais ações, de maneira que a igualdade não seja apenas parte de uma retórica falida.

O Poder Judiciário Eleitoral deve estar atento à toda sorte de criatividade perversa que vise obstaculizar as ações positivas e, por que não, a concretização da igualdade constitucional.

Cotidianamente são levadas à apreciação da Justiça Eleitoral diversas ações que demonstram o intuito de alguns em alterar esse caminho virtuoso. Como já ressaltado, campanhas femininas laranjas e investimentos empregados em desconexa relação com as empreitadas das mulheres na política, responsáveis pela liberação de recursos, são exemplos comuns.

Juízes de primeira, segunda e terceira instância devem concretizar, ao fim e ao cabo, como última trincheira, a igualdade de gênero, a legítima intenção do legislador constituinte, as políticas positivas, exigindo, com mais rigor, a comprovação do adimplemento das ações afirmativas, aumentando o sarrafo para que restem comprovadas as licitudes das campanhas femininas, em todas as suas circunstâncias. Sem uma Justiça Eleitoral firme e sensível, a desigualdade política de gênero continuará impactando o interesse da coletividade, mais longe de superação.

 

Referências

Nota 01 Doutor em Direitos Fundamentais pela FDV/ES (2014). Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais pela FDV/ES (2004). Professor de Processo Penal na FDV/ES. Juiz Federal Titular da 2º Vara Criminal de Vitória/ES. E-mail: bedejunior@hotmail.com

Nota 02 Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Pós-graduado em Compliance, Lei Anticorrupção Empresarial e Controle da Administração Pública pela Faculdade de Direito de Vitória FDV. Especialista em Ciências Jurídicas pela Faculdade Cândido Mendes (RJ). Juiz do TRE/ES pela classe dos juristas e diretor da EJE/ES. E-mail:renan@soladvogados.com.br

Nota 03 BRASIL. Lei nº 4737. 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4737compilado.htm. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 04 BRASIL. Constituição Federal de 1988. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 05 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.617/DF. Requerente: PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA. Intdo(s): PRESIDENTE DA REPÚBLICA e CONGRESSO NACIONAL. Relator: MINISTRO EDSON FACHIN. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748354101. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 06 BRASIL. Superior Tribunal Eleitoral. Resolução nº 23.607. 2019. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-607-de-17-de-dezembro-de- 2019. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 07 BRASIL. Lei nº 14.192. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2021/Lei/L14192.htm. Acesso em: janeiro de 2021.

Nota 08 BRASIL. Decreto nº 10.932. 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n- 10.932-de-10-de-janeiro-de-2022-373305203. Acesso em: março de 2022.

Nota 09 BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. CNJ recomenda a tribunais seguir decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj- recomenda-a-tribunais-seguir-decisoes-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos/. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 10 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 11 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 12 § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo: DLG nº 186, de 2008, DEC 6.949, de 2009, DLG 261, de 2015, DEC 9.522, de 2018) (Vide ADIN 3392).

Nota 13 PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição Viva – Poder Constituinte Permanente e Cláusulas Pétreas na Democracia Participativa – 6ª edição, ed. Lumen Juris, p. 214.

Nota 14 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001. p. 89.

Nota 15 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 131-132.

Nota 16 ROCHA, Carmém Lúcia Antunes. Ação Afirmativa: O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. In. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 33 n. 31, jul/set. 1996. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176462/000512670.pdf?sequence=3 &isAllowed=y. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 17 ROCHA, Carmém Lúcia Antunes. Ação Afirmativa: O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. In. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 33 n. 31, jul/set. 1996. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176462/000512670.pdf?sequence=3isAllowed=y. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 18 GAMBA, Luísa Hickel. A contribuição do Poder Judiciário na efetivação das ações afirmativas para ampliação da representatividade de gênero na política. In: Revista Resenha Eleitoral, v. 24, n. 2, p. 117-138, 2020. Disponível em: https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/22/16. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 19 BRASIL. Constituição Federal de 1988. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 20 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186/DF. Requerente: DEMOCRATAS (DEM). Intdo(s): CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – CEPE; REITOR DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA e CENTRO DE SELEÇÃO E DE PROMOÇÃO DE EVENTOS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Relator: MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 21 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186/DF. Requerente: DEMOCRATAS (DEM). Intdo(s): CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – CEPE; REITOR DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA e CENTRO DE SELEÇÃO E DE PROMOÇÃO DE EVENTOS DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Relator: MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 22 BRASIL. Senado Federal. Legislatura atual. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/senadores. Acesso em janeiro de 2022.

Nota 23 BRASIL. Senado Federal. Legislatura atual. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/senadores/em-exercicio/-/e/por-sexo. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 24 GAMBA, Luísa Hickel. A contribuição do Poder Judiciário na efetivação das ações afirmativas para ampliação da representatividade de gênero na política. In: Revista Resenha Eleitoral, v. 24, n. 2, p. 117-138, 2020. Disponível em: https://revistaresenha.emnuvens.com.br/revista/article/view/22/16. Acesso em: janeiro de 2022.

Nota 25 ROCHA, Carmém Lúcia Antunes. Ação Afirmativa: O conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. In. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 33 n. 31, jul/set. 1996. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176462/000512670.pdf?sequence=3 &isAllowed=y. Acesso em: janeiro de 2022.